Linhas Tortas

Perfil de Arianne Ruas, por Thiago Santoro e Vinícius Micheletto.

Vinícius Micheletto
8 min readNov 5, 2020

Para quem apenas escuta as músicas e a segue nas redes sociais, Arianne Ruas é uma pessoa calma, sensível e serena. Em partes, é verdade: a cantora de Carlos Chagas vê na música uma oportunidade para mergulhar em si; no entanto, a imagem projetada em suas redes sociais esconde os desafios que encontrou na sua jornada. Ela, que saiu de sua cidadezinha e se jogou ao mundo no momento em que se mudou para Belo Horizonte, buscando seu lugar no mundo.

Arianne Ruas teve seu primeiro contato com a música nos corais de sua Igreja e do CCAA — escola onde estudou Inglês — em Carlos Chagas. Incentivada quando pequena pelos pais que já viam em sua filha o gosto pelo canto e pela música. Com o passar do tempo, no entanto, no peito de Arianne foi se desenvolvendo um sentimento de deslocamento, como se não pertencesse a esses locais. Na Igreja, as músicas que cantava se limitavam às religiosas, e havia um preconceito com outros estilos musicais, como o pop que cantava no CCAA. Neste coral, por mais que houvesse diversidade nas canções performadas — o catálogo variava de músicas do filme High School Musical às de Bob Marley — não era suficiente. Nos três anos que passou lá, Arianne cresceu e os corais não conseguiram acompanhar seu desenvolvimento. A fim de descobrir novos ares, ela dedicou seu tempo a aprender o violão: um passo importante em sua jornada. Teve aulas com conhecidos em Carlos Chagas; depois, quando já tinha uma noção básica do instrumento, passou a aprender sozinha com o auxílio da internet. Arianne sente que aprendeu mais por si mesmo, vendo partituras das canções que gosta e fazendo covers delas.

“Não tive nenhuma época da minha vida que eu distanciei do violão”.

As apresentações na escola, apesar de traumáticas, como ela conta se recordando dos comentários infantis que ouvia das outras crianças, foram uma parte importante para seu crescimento. Contudo, a chama se acendeu verdadeiramente após assistir ao show de um conhecido, que mais pra frente seria fundamental para o início da sua carreira: Gustavo Belini. Ela foi atrás dele após a apresentação e, conversando sobre música e outros assuntos, começaram uma relação de amizade. Depois de manter o contato por certo tempo, ele a convidou para participar de um show, uma apresentação com “vibe retrô”, chamada “Nostalgia Musical”, na qual cantaram músicas clássicas de outras décadas para animar a noite de Carlos Chagas. O apoio da família transbordou ainda mais nesse momento, e um de seus irmãos, o que aparenta não ligar para coisas sentimentais, não segurou o choro. “É muito doido! Quero fazer isso mais vezes na minha vida”, ela comenta sobre o que sentiu após a apresentação, transparecendo para além do seu jeito sereno visto nas redes sociais.

Foi nesse momento que Arianne começou a deslanchar e se entregar à música. As primeiras composições começaram a sair e, com ajuda de Gustavo, a experiência em palco e o domínio do violão só cresceram. Em 2017, Arianne lança seu canal no youtube de covers e com isso se inaugura uma nova etapa. Sobre o canal, ela diz que o criou com a intenção de estabelecer um público próprio, para ter uma base sólida que receba bem as músicas autorais que lançaria no futuro, como “Linhas Tortas”, primeira música que escreveu e sentiu que estava boa. Ela comenta que, apesar de fazer covers, todas as versões que interpretava ganhavam uma tonalidade própria, como se deixasse um pouco de si em cada música. Inclusive, ainda em 2017, o Twitter oficial de George Harrison compartilhou um cover que Arianne fez de “Something”, elogiando o cover. No entanto, as coisas não continuariam tão tranquilas como ela esperava.

Todos nós passamos nossa adolescência curtindo alguns prazeres que a disponibilidade de tempo e a paixão da idade nos permitem; contudo, certa hora a vida bate à porta e é necessário atender. Foi então que Arianne começou a refletir sobre sua carreira profissional. A paixão pela música era gigantesca, mas, apesar disso, a necessidade de algo mais sólido se fez presente: ela percebeu que, na música, são muitos os que tentam e poucos os que conseguem; além de talento e dedicação, é necessário sorte, e depender do acaso nunca é uma escolha sábia. A decisão do que cursar veio-lhe à mente como um verso de música surgido ao acaso:

“Eu gosto de muita coisa, de falar de muita coisa, argumentar sobre muitas coisas. Então eu tive uma epifania e percebi que talvez esteja aí a resposta! Porque o jornalismo te permite falar sobre várias coisas e estar envolvido com várias coisas, né?”.

Como uma epifania de quem vê um cego mascar chiclete e pula de um bondinho, Arianne se mudou para Belo Horizonte para fazer cursinho e se tornar jornalista, como sonhara. Talvez a ideia de ter dois sonhos é de fato uma estranheza sob as condições em que vivemos — um já é difícil de alcançar. Logo, para ela, o sentimento de inquietação permaneceu, principalmente com todas as novas descobertas que uma capital poderia angariar. A cena musical era acolhedora, os artistas de Belo Horizonte se apoiavam mutuamente. Ela assistia a shows incríveis a todo momento, a música e o viver de música agora estavam cada vez mais próximos. Contudo, a batalha que seria enfrentada para atingir uma independência na área musical se fez mais clara. O jogo então se fechou: dois sonhos distintos exigiam duas lutas diferentes; e foi aí que Arianne se viu em seu período de maior sensibilidade e busca por autoconhecimento. A dúvida ainda persiste em seu âmago: “Eu não tenho resposta pra nada, um dia eu vou ter que me decidir se eu vou continuar me dedicando ou não”, nos confessa Arianne.

Os estudos seguiram tão firmes quanto a paixão de criar arte. Nos pequenos intervalos que lhe sobravam, Arianne dava atenção a seu canal, deixando de descansar para gravar e editar seus vídeos. Carregada pela vontade de passar na Universidade de São Paulo e de impulsionar seu canal no youtube, ela encurralou-se e mergulhou em uma imensidão de pensamentos enquanto estudava no cursinho. Para muitas pessoas esse momento de instabilidade emocional desestimularia o lado artístico, mas o que Arianne não esperava é que sua fragilidade lhe ajudasse ainda mais na busca por um de seus sonhos. Sensível e emotiva, os momentos de angústia são os mais produtivos para ela. Inclusive, escreveu “Temporal”, uma de suas músicas autorais, nessa época, expressando esse sentimento de estar só em meio às mudanças. “Sufoco é não notar a paz”, diz a música.

Ela não estava sozinha, tinha Gabriel, seu namorado, a apoiando durante o temporal. Eles se conheceram em 2018, através de uma amiga. Arianne não deu importância aos flertes virtuais que recebia de seu atual namorado, até que um dia foram a um show a convite da amiga, que os apresentou formalmente. A situação estava um pouco constrangedora no começo, até que a música começou a tocar. Tocou uma que ambos gostavam, e Gabriel, sem se importar com a opinião dos outros, começou a dançar de maneira incomum — usa-se aqui incomum como eufemismo. Arianne notou o jeito que o rapaz dançava, e isso a fez sentir algo. Talvez tenha lembrado da época onde cantava em seu colégio, dos comentários dos colegas que a fizeram se sentir constrangida; talvez não tenha se lembrado de nada. O que importa é que vê-lo dançando daquela forma despertou algo dentro de si e passou a sentir admiração por Gabriel. Naquela noite, ficaram pela primeira vez. Com o passar do tempo o jovem assumiu um papel importante na vida da moça, que não nega ao dizer que colocou mais peso nas costas dele do que devia. Ele era a única pessoa de Belo Horizonte com quem podia conversar de verdade, se abrir e desabafar.

Quando entrou na UFMG, se sentia deslocada. Ao menos o estresse de 2018, relacionado a questões como o vestibular e a solidão, tinha passado. O temporal se tornou uma chuva, e, ao longo de 2019, foi gradativamente virando garoa. A dualidade de Arianne, que tem de equilibrar a faculdade com a carreira musical se tornou a principal preocupação da garota, mas fez novas amizades que a ajudaram a se estabilizar emocionalmente e afastar a solidão. Se encontrou no jornalismo, como previra anos antes, e as pessoas do curso logo descobriram o seu canal. De quando em vez, era abordada na cantina da Faculdade de Letras pelo que suas amigas chamam de “fã clube”.

Sobre o cenário musical de Belo Horizonte, Arianne comenta que, por sua diversidade e efervescência, é admirável. No entanto, denuncia os privilégios de alguns artistas. Diz que alguns já possuem os contatos, e também conta que o cenário é composto majoritariamente por homens. A respeito do primeiro aspecto, fala que existem artistas que já tem equipes para gerenciar as redes sociais e os outros aspectos da produção artística, enquanto ela faz tudo por si mesma — lógico, com a ajuda de Gabriel. Sobre o segundo, diz que sente-se repelida nos ambientes musicais, como estúdios e palcos, e se esforça para mudar isso. No festival Soma, que participou em 2020, conta que eram mais de 20 bandas, e apenas 2 mulheres — incluindo ela — se apresentaram. Há uma carência de mulheres no cenário musical belo horizontino, e ela é mais presente na área da produção, diz Arianne.

É perceptível no modo com que fala sobre a época de vestibulanda como as coisas se ajeitaram. No entanto, um desafio que Arianne enfrentava ainda não a abandonou e provavelmente a acompanhará por muito mais tempo: equilibrar sua vida de estudante com a de artista. Ainda como antes, produz para seu canal nos momentos de descanso; nas férias, concentra-se exclusivamente na produção musical. Apesar disso, está incerta se é esse o caminho que quer seguir pela vida. “Eu não sei se sou a pessoa que consegue lidar com fama”, acrescenta. Mesmo com todas essas indecisões em sua mente, as postagens em seu Instagram e as músicas que publica no Youtube passam a seu público certa tranquilidade. Ela tem consciência dessa persona que criou para si, mas explica que ela não foi pensada de antemão. Inclusive, comenta que tenta abandonar essa imagem e se tornar mais real, mostrando os perrengues que enfrenta na hora de gravar ou se posicionando sobre certos assuntos relevantes. Passo a passo o mundo vai conhecendo a garota de Carlos Chagas, que passo a passo vai se conhecendo pelo mundo.

“Você tocou na minha ferida, né? É exatamente isso: vida dupla. Eu tento dar meu melhor nas duas coisas, mas como eu não sei qual delas eu vou trilhar eu tento focar nas duas ao mesmo tempo, que é bem exaustivo”.

Ela desabafa quando perguntada sobre suas fraquezas acerca do assunto. O que reconforta Arianne, no entanto, é a paixão por aquilo que faz. Como alguém que usa de sua arte para lidar com os momentos difíceis saberia lidar com as frustrações de outra forma? Arianne segue, como a maioria dos jovens de sua idade, em um mundo de incertezas e inseguranças às quais cada escolha de caminho traçada parecem prescrever o fim.

Jogada a imensidão de possibilidades mais uma vez e deixando a correnteza a levar, talvez Arianne encontre, novamente, a resposta através do equilíbrio de suas incertezas. Talvez a sua realização como artista não se dê somente através da busca pela fama e sim produzindo apenas para um público engajado, independente do tamanho. Seu sonho é continuar compondo e escrevendo, afinal, é o que a reconforta. Da mesma forma, ela expressa seu gosto pelo jornalismo, que casa perfeitamente com sua personalidade, apesar de ser, assim como a música, um campo incerto.

Seria fácil encerrar o texto colocando Arianne como alguém em dúvida constante, sempre a procura de um epifania. Entretanto, é nessas Linhas Tortas por onde percorre que se sente confortável, como se tivesse acostumada a viver no temporal. Para ela, a arte é hobby e profissão, assim como o jornalismo é profissão e hobby. Ao final, parece que suas escolhas estão bem feitas e só o futuro será capaz de traduzi-las. “Eu não tenho a menor ideia do que vai ser, por enquanto eu to fazendo as duas coisas que eu gosto”, diz sorrindo.

--

--